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"Borges/Dante: tradição, tradução, paródia"
Entrevista a Emir Rodríguez Monegal - por Haroldo de Campos, Irlemar Chiampi e Leyla Perrone-Moisés
En: Trad. & Comun. Sao Paulo, año 1, nº 1, dez. 1981.
p. 129-149

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"A publicação, nos Estados Unidos, do livro, Jorge Luis Borges: A Literary Biography (New York, Dutton, 1978), de Emir Rodríguez Monegal, serviu de base, há uns meses atrás, a uma discusão de alguns aspectos da obra com o autor. Os interlocutores -poeta e critico Haroldo de Campos, que havía publicado, no mesmo ano de 78, uma "transcriação" de Seis Cantos do Paraíso dantesco: a professora Irlemar Chiampi, especialista em teoría literaria e em literatura hispanoamericana; e a professora Leyla Perrone-Moisés, especialista em teoría literaria e em literatura francesa- não se limitaram a glosar a biografía, mas propuseram a sua própria leitura critica dos textos, conseguindo, deste mosto, um diálogo que foi além do pretexto inicial. Antecipamos, hoje, uma parte desse diálogo que confronta e distingue o texto de Borges com outros textos ilustres.

Haroldo: Na realidade, a introdução da Psicanálise na biografía de Borges teve que responder a um objetivo estratégico. Para quem começou a acompanhar o movimento artístico e os fenómenos culturáis da vida norte americana, na década de 50, o recurso a Psicanálise era uma maneira de trazer à cena, num filme ou num outro texto cultural, uma alusão ou evocação de algo como a região "pudenda". Era o problema erótico. O seu livro, neste particular, não hesita. Exatamente por não tratar da "vida" do Borges real, mas da "biografía" de um texto chamado "Borges", pode abordar com a maior naturalidade aquele engendramento textual que é, por sua vez, um problema, ou um aflorar de tipo erótico: o Eros no texto. Esta maneira de encarar o problema pode ser extremamente surprendente para o leitor, porque "confissões" ou "confidências" dessa naturaleza Borges é extremamente relutante em fazé-las, e quando aparecem no texto dele, estão sempre eludidas através de uma técnica de evasão na qual ele é um sapiente mestre.A uma certa altura do seu texto, vocêfaz menção a um poema do Borges, onde aflora exatamente com toda a intensidade esse problema ("Le regret d'Héraclite'):

Yo que tantos hombres he sido
no he sido nunca aquél,
en cuyo abrazo desfallecía Matilde Urbach.
Gaspar Camerarius. .. (In.: Deliciae poetarum...).

Aquí, Borges, sob a máscara de um poeta germano-romano (talvez ele pertencesse aquela desejada "monarquía universal" que o Dante preconizava na Comédia...), lamenta um amor que jamais conseguirá realizar. Diremos assím, na prática, ai está o momento onde você faz uma análise, vamos dizer assim, implacavelmente direta, de todas as implicações que este poema traz, inclusive no mundo borgiano, problema que aflora entre a imaginação textual e a impossibilidade da realização dessa imaginação na vida real. Tudo isso é extraído como um efeito, digamos, da leitura desse texto. Então, eu diria, esse não hesitar diante de tudo aquilo que fosse eventualmente ilícito a nivel de inconfidência, mas que se põe diretamente num diálogo com a textualidade, não implica, de certa maneira, um desvendar dos recessos do autor, pois é feito de tal modo, que nem o autor está envolvido, nem a sua recusà a essa revelaço está posta em questão: o que fala é uma outra voz: não a do poeta ("homem real"), mas a do texto.

Emir: De acordo. O que acontece é que, na obra de Borges, assim como ha certas ausências inquietantes, há também certas presenças muito significativas. E uma délas é a do fracasso amoroso. 0 fracasso amoroso se da quase sempre ao nivel explícito de atrair a atenço da mulher amada. Isso se vé em muitos textos: poesía, ficção, até ensaio. Ha muítos personagens de Borges que fracassam, por amar mulheres que amam outros homens ou se amam somente a elas mesmas. Nesse sentido, "El Aleph" é uma história muito clara. A Beatriz Viterbo do conto quase nem tolera o Borges, o personagem que o texto chama "Borges". Ele ia a todos os aniversários déla e levava um livro de presente. Quando voltava, no ano segumte, descobria (Beatriz nem cuidava de dissumular seu desinteresse) que o livro do ano anterior estava ainda sem abrir. Esse tipo de detalhe -cómico, irrisório, patético- aparece ém muitos outros textos. Também aparece neles o fracasso amoroso, mas a nivel da experiencia sexual. Um dos contos mais elaborados nesse sentido é a "Seita da Fénix", que parece uma fantasía arqueológica sobre uma seita oriental que assegura a imortalidade a seus crentes. Está escrito em forma ensaistica e com tal abundância de dados históricos ou legendarios, que é bastante difícil de compreender em que consiste o segredo da "Seita". Muitos críticos se perguntaram qual era. Até que um norte-americano teve coragem de perguntar diretamente a Borges. Ele respondeu: "Vou deixar vocêpensando, amanha vou dizer". No día seguinte (naquela época Borges estava casado), ele olhou para ver se não estava a mulber perto, e depois explicou: "0 segredo da seita é o rito que se chama geraçao, isto é, o ato sexual. Esse rito assegura a imortalidade, se não do individuo, pelo menos da especie". Talvez fosse possivel, lendo cuidadosamente o texto, chegar a essa solução. O mais inquietante do conto é que o narrador mesmo não pertence à "seita", e descreve o que não conhece. Uma frase do texto indica sutilmente que o narrador é impotente, dai a sua marginalidade sexual. Em outro texto, "Teoría de Almafuerte" -que não se menciona na biografía por razões de síntese-, Borges fala do poeta argentino, Pedro B. Palacios, que usava aquele pseudônimo. E uma das primeiras coisas que aponta é que Almafuerte -como Carlyle e Ruskin- era impotente. Então, eu pensei que esse tema, que estava suprimido em algum texto e que estava aludido indiretamente em outros, encontrava nesse poema que você citou uma expressão precisa. Lido literalmente, o poema pode significar que "Camerarius" nunca teve oportunidade de abraçar a Matilde Urbach, mas também podía querer dizer que ele nunca poderla fazer com que ela chegasse ao pleno orgasmo. Outros sim. Agora, a interpretação está feita no meu livro a esse nivel textual. A aplicação a Borges, como pessoa real não está feita, nem precisa ser feita, o que está indicado é uma preocupação ou obsessão que aparece nos textos dele. Para justificar uma extrapolação à vida real, seria preciso ter documentos que eu não possuo, nem me interessa possuir realmente.

Haroldo: Neste ponto, há algo que eu acho muito interessante, que é o problema da ufilização da biografía na pesquisa literaria. Lembro-me duma reflexão que faz Román Jakobson quando defende exatamente a legitimidade da utilização da biografía do autor na análise textual. A referência é feita pelo Boris Schnaiderman, num estudo sobre Jakobson que está em Lingüística, poética e cinema. Jakobson diz, a certa altura, que tanto o biografismo, transposição mecánica da vida do escritor para a obra, é nocivo, quanto é nocivo o antibiografismo que seria a reversão dessa atitude, a negação da possibilidade de uma comunicação de vida e de obra. Na medida que o critico imagine que através da transposição mecânica vai dar conta da complexidade da vida real do escritor, está caindo numa ilusão tão nociva para o estudo literário quanto aquela outra que imagina que não há nada a ver eníre o texto e a vida do escritor. A ligação sutil, dialética em termos de tensão de uma rede extremamente capilar de medições, é aquela que tem de ser preservada. Na medida em que você , no seu livro, fica a ésse nivel, é o texto "Borges" que é vivificado por toda uma serie de outros demonios. Você consegue preservar, eu acho, essa função textual da biografia, mesmo em momentos cruciáis como este.

Emir: Aliás, no caso do poema atribuido a Gaspar Carnmerarius, tal vez seja interessante mencionar brevemente como e cuando foi publicado. O poema aparecen pela primeira vez numa revista que Borges dirigía nos fins dos anos quarenta. Anales de Buenos Aires, e apareceu numa seção chamada "Museo": colagem de textos estranhos e curiosos, escolhidos nas fontes mais inesperadas e atribuídos muitas vezes a autores famosos. Tal como foi publicado o poema, tudo levava a pensar que era tradução dum poeta germânico. Mas, no momento em que Borges incluí esse poema e outros textos apócrifos numa secção chamada "Museo", num livro dele próprio El hacedor, no ano 60, a ficção de ser o poema uma tradução resulta insustentável. A autoría de Borges, mesmo obliqua, fica insinuada. E um exemplo mais, desse afirmar e negar tão característico do texto "Borges", mestre da ambigüidade. Então o que eu faço, no meu libro biográfico, não é resolver a ambigüidade ao nivel da vida, biomas ao nivel da grafia: quer dizer, do importancia estratégica da colocação do texto na bibliografía de Borges. O que eu estudo é o que o texto diz com relaço aos outros textos, sem entrar na discussão do aspecto puramente biográfico. Lembre-se que o meu lívro se define como "Literary Biography".

Haroldo: Antes de você desenvolver estas respostas finais concretes, você faz uma alusão ao texto em que aparece a personagem feminina Beatriz Viterbo, que é "El Aleph", contó que é objeto também de um enfoque multo particular no seu livro. A Irlemar tem algo a dizer a respeito, talvez fosse agora o momento oportuno para colocar a questão.

Irlemar: Acho que o método mais utilizado no seu livro, e o mais eficaz, é a indícaço dos textos que intervieran na elaboraço dos contos borgianos. Tal é o caso da sua análise de "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", que você relaciona com Utopia, de Thomas More e Out of the silent planet, de C. S. Lewis. E também de "El Aleph" e "El Zahir", os quais você analisa no capitulo The Meeting in a Dream sobre as reláções textuais desses dois contos que eu gostaria de tecer algumas considerações. Há neles duas personagens femininas, Beatriz Viterbo e Teodelina Villar, qué pertencem, conforme você indica, a categoría da "femme fatale", a "mulher tentadora", ou "La belle dame sans merci". Além disso você indica que essas personagens remontam, finalmente, à Beatriz de Dante Alighieri.

Emir: ... na leitura paródica de Borges.

Irtemar: Claro. Eu não quero discrepar dessa interpretação, mas quisera assinalar que éincompleta e que leva você a desprezar um aspecto importante na visão borgiana da mulher. Essas personagens podem ter sido modolizadas por Borges a partir do arquétipo feminino elaborado por Dante, mas vão mais além, vinculam-se a um universo textual anterior a Dante. Eu me refiro á dama dos "pactos provençais", da Idade Media, que é a origem da "paixão de amor", e que inspirou toda a literatura de imaginação do Ocidente. Há muitas similaridades entre os motivos usados por Borges e a concepço do "amor cortês ". Vou mencionar apenas as mais obvias, por exemplo: a paixão casta que se converte em religião, no sentido lato do termo: a fidelidade absoluta à dama e a devoço do amante à amada: o obstáculo a realização amorosa e a esperanza de um encontro em algum lugar e o diálogo imaginário com a amada. Há também o nome secreto da dama e a sua inacessibilidade etc. Mas há um aspecto bastante relevante, que comparece em Borges e que é o da mulher aliada a Lúcifer (como corpo, tentação, carne) mas, simultaneamente, como lugar de reunião espisitual como religao. Creio que essa concepção dualista está nessas duas personagens borgianas, Beatriz Viterbo e Teodelina Villar: elas são o claro e o escuro, espirito e carne. Se se perde de vista essa dualidade, perde-se o que me parece central no tratamento que Borges da ao tema do amor que é la busca da identidade do amante na amada, aínda que esta o despreze ou seja indiferente. Agora, fica visivel na sua leitura o privilégio dado a predicação satânica, despótica dessas duas personagens, em detrimento do luminoso ou divino. No final do conto "El Zahir", você indica, a mulher está simbolizada na moeda, mas eu recordó que a moeda simboliza Deus, pois o contó termina assim: "Quizá detrás de la moneda esté Dios". Aliás, até o nome Teodelina já traz esta significação (em Teo]. Mas voltando a sua leitura, o curioso é que você não so pôe a énfase sobre a crueldade da mulher, como também troca o nome de Teodelina para Clementina, o que me parece um "parti pris"...

Emir: ...é um ato falho...

Irlemar: E o biógrafo assumindo as dores do biografado, de modo que o personagem 'Borges' aparece como a vitima infeliz dessas mulheres despóticas. Gostaría de saber como você vé esse vínculo da temática amorosa em Borges com a tradicao ocidental do amor paixao. E como você explica esse sen 'ato falho', de chamar a Teodelina de Clementina.

Leyla: E nesse ato falho o que você recusa justamente é o lado divino da mulher.

Haroldo: Mas acentúa a clemencia.

Emir: não posso explicar a errata porque eu não corrigi as provas de página do livro; so corrigi as provas de 'galera' (nao sei como se diz em portugués, quando o material está todo composto mas sinda não esta em página). Por isso, não sei como desapareceu Teodelina e apareceu Clementina e, como não tenho aqui as provas, não sei se éuma errata minha ou é uma invenção dos revisores, lá em Nova York. Eu estava precisamente aquí em São Paulo quando corrigi as primeiras provas. Aliás, tive uma experiência muito ruim com outro nome no livro, o de Jean de Milleret, um amigo francés do Borges que aparece citado muitas vezes. Apesar de que sempre o escrevi corretamente, no manuscrito, quem fazia o "copy editing" do livro sempre aiterava a ortografía. Tivemos uma polêmica que durou meses. Por isso é possivel que "Clementina" sea erro meu; também é possivel que não o sea. Agora vamos admitir que o erro sea meu, porque é mais divertido que eu tenha omitido a Deus e haja procurado a demencia "divina" no nome de Teodelina: bato no meu peito e digo: "Mea culpa".

Leyla: Segundo diz o "Lacan", os "actes manqués" são os únicos "actes réussis".

Haroldo: 'réussis''como 'ratés'.

Emir: Se eu sou o responsável, é uma 'réussite' paradóxica. Eu conseguí transformar o personagem de Borges para melhorar o meu argumento. Agora, o outro problema mais geral pode explicar-se fácilmente. O titulo do capitulo explica o meu enfoque. "The Meeting in a Dream" alude a um texto do Borges que se chama "Encuentro en un sueño" e que pertence a um texto crítico sobre a Divina comédia que ele escreveu so mesmo tempo que "El Aleph".

Irlemar: Mas onde você alude exatamente ao amor como religião? Por isso eu pensei que você acentuava demais a falibilidade do Deus ou Deusa.

Emir: Precisamente, o texto critico sobre a Divina comedia afirma: "Estar enamorado es crear una religión que tiene un dios falible". O que acontece é que essa mesma frase a estamos lendo você e eu, e cada um poe o acento em um lugar diferente. Eu, no "Dios falible", e você , no ser devoto de uma religião. Por isso eu acho que as duas leituras são diferentes, mas compativeis. Eu leio "El Zahir" e veho toda a paródia e o sarcasmo com o qual Borges descreve a Teodelina Villar. Por exemplo, ele inventa as coisas mais cruéis sobre ela. Ao indicar que Teodelina Villar seguía servilemente as modas de Paris, comenta que cuando se cortou toda a comunicação na hora da ocupação nazi, aponta que alguém a enganou com modelos parisienses, que tinham sido inventados em Buenos Aires. Ao ser liberado Paris, Teodelina sofre o vexame de descorbir que aqueles modelos nunca haviam sido usados em Paris, portanto não eram "modelos". Borges inventa tudo com essa maldade tão peculiar que ele tem.

Irlemar: Sim, mas há um dado relevante lá que é o da devoção pela imperfeção.

Emir: Claro, estamos vendo um certo tipo de problema. A mesma coisa acontece com Beatriz Viterbo. O retrato dela no "El Aleph" está carregado de maldade e inclusive até no aspecto sexual é muito violento. Quando"Borges"contempla o Aleph no porão da casa de Beatriz, pode ler as cartas minuciosamente obscenas que ela escrevía ao seu primo, Carlos Argentino Daneri. Isto é, existe toda uma transformação paródica, uma carnavalização do protótipo de Beatriz. Em Dante, ela é a pureza total. O mesmo acontece nos trovadores provençãis, de onde vem o Dante. E precisamente essa inversão da paródia o que o Borges procurou. Para mim, a chave as leituras dos dantólogos, que vêem a cena do encontro de Dante com Beatriz, no purgatório, como uma cena de redenção: Dante é finalmente redimido: Beatriz o trata duramente mas o perdoa. A interpretação que faz Borges é a oposta. Dante, nem nesse sonho lúcido, que é a Comédia, se atreve a imaginar que a Beatriz o pudesse tratar bem. A sua é uma visão totalmente negativa. Agora, o que acontece é que todo o texto, e o texto "Borges" em primeiro lugar, postula uma leitura e seus contrário; você escolheu o contrário; voce aceitou a leitura paródica, mas foi alêm dela para descobrire os aspectos positivos que inevitavelmente o texto contém.

Irlemar: Mas o mesmo Borges assinala tanto no "Zahir" como no "Aleph" o aspecto dualistico da mulher: o aspecto luminoso e o satánico. Cuando fala da moeda do "Zahir" ele menciona e até escreve em itálico, o oxímoron, e também quando fala de Beatriz, fala do oxímoron. Por isso, eu acho que dos dois aspectos, na sua Interpretação, você marca com multa énfase somente o negativo, quase como para sublinhar o aspecto de vitima do personagem "Borges" diante da mulher despótica. Você não menciona a busca, essa identidade ou projeção do eu profundo de Borges na amada.

Haroldo: Essa divergencia de leitura talvez nasca do fato de que, pelo tratamento do problema que você faz nesse capitulo, "O encontronum sonho", você é obrigado a aproximar de uma maneira estrita "El Zahir" e "El Aleph". Talvez, esses dois textos não tenham a mesma emotividade, eles tém traços em comum, mas tém traços diferenciais, e o traço diferencial que eu diría que existe em "El Aleph" é que o aspecto degradado de Beatriz é muito mais evidente e a inversão paródica se torna mais pronunciada nesse conto. E agora, eu vou tentar acrescentar alguma coisa ao que diz a Irlemar e ao que você responde de um outro ângulo de reflexão. Eu me lembro que tinha lido ha muito tempo o "Aleph" e voltei a relé-lo depois de uma conversa que tivemos na época que inclusive eu estava traduzindo o Paraíso de Dante, exatamente o canto em que aparece o "Aleph" do texto borgiano. Aliás é um topos que se acha também em Camões -na maquina do mundo-: lá nós temos o mesmo problema, se abré a máquina do mundo e se revela às personagens dos Lusíadas. Agora, o que é interessante para discutir o problema das marcas textuais na texto paródico é que quando tivemos essa conversa, há dois anos (você estava escrevendo o livro sobre o Borges, e eu estava traduzindo, revendo, minha tradução do Paraíso), eu fui reler o 'Aleph' já com a indicaço que você me fazia do problema do diálogo intertextual Borges/Dante. Você , na ocasio, me obteve uma xerocópia desse texto critico que eu não conhecia: o prefácio a uma edição argentina da Comedia, e que era extremamente elucidativo. Repassando, assim, o contó e o prólogo pude verificar, o que era curioso, desde as coincidencias da grafía, já que enfim: Carlos Argentino Daneri é Dante Alighieri, Beatriz Viterbo é Beatrice Vita Nuova, porque Beatriz aparece em Vita Nuova e em Viterbo etc. Se a gente tentasse ampliar o resumo de coincidências, a operação seria infinita. Por que a Vita Nuova? Porque é um texto muito estranho. Esse é um texto que poderla ter sido escrito por Borges, se Borges se chamasse Dante e vivesse na época do Dante. Porque é um romance que não é um romance, que é um estudo critico sobre a forma da canção de certos poemas dantescos, sobre a própria elaboração da poesía.

Emir: É uma biografía literaria.

Haroldo: É uma biografía literaria de Dante. Vita Nuova é uma forma ficcional extremamente híbrida e inusitada que, não é romance, que não é metalinguagem, que não é poema. Digo mais, faço uma referencia bastante curiosa que é a seguinte: Roland Barthes, escrevendo sobre Drame, de Philippe Sollers, tenta mostrar como as pessoas reagem de uma manera convencional a idéia do romance e ficam asustadas guando alguem escreve alguma coisa que se chama 'Drama", mas que tem o subtitulo 'roman', porque esperam personagens, entrecho etc. Isso nasce de um velho equivoco no espaço cultural francés. Há um tradutor francês da Vita Nuova que dizia que não conseguía situá-lo, que era um livro estranhissimo, que aquilo não era romance, mas também pão era classificável como poesía e aínda tinha fragmentos de poemas misturados com comentarios etc. Essa tradição do hibridismo dos géneros é algo que parece fruto de uma elaboração recente, desta, digamos assim. Dissoluço do género romance acentuada no nosso século, mas é uma coisa que tem uma pré-história. O exemplo da Vita Nuova é, claramente, uma autobiografía ficcional de Dante escrita sob a forma de um comentario de poemas. Esse hibridismo de géneros é exatamente o que faz o Borges -é uma 'ficción' que ao mesmo tempo é um discurso critico, é uma metalinguagem, como, o personagem Beatriz, na Vita Nuova, aparece a margem de uma reflexão metalingüistica sobre canções que versam sobre a experiencia amorosa de Dante. Já o livro é bastante intrigante e eu não sei se o Borges chegou a escrever específicamente sobre a Vita Nuova alguma vez, presumo que não , mas de qualquer maneira é um livro que interessaria a Borges, que interessa ao texto chamado "Bor ges". Nesse livro é que surge Beatriz como personagem. Há uma serie de indicios textuais no "Aleph" da presença desse diálogo com Dante. Um outro indicio estranho, curioso: eu me lembro da minha surpresa (algo ingenua) quando vi em letrinha pequeña, em itálico, no final do conto, uma dedicatoria a "Estela Canto" e disse a você: não sei se ai Borges acabou sendo escrito pelo próprio texto dele, lá o texto invadiu a biografía, porque Estela Canto é o tipo de personagem ideal para ser destinatario de um raconto sobre o "Aleph". Porque Estela = estrela, Canto = canto dantesco. E você até lembra, no seu livro, como também existe uma mistura entre o personagem Dante/Virgilio no Carlos Argentino Daneri. Você também me lembrou que Estela Canto, em espanhol significa: "Yo canto a Estela"'. Eu poderla dizer: "Arma virumque cano", é o começo da Eneida.

Emir: Aliás, como indico na biografía, Estela Canto não somente existe, mas o Borges deu o manuscrito do "Aleph" para ela. Eu o vi e até fui autorizado a tirar um xerox da primeira e da última página.

Haroldo: Ela é a destinatária auténtica e desejável do texto. O texto se autenticou numa destinatária que não poderia onomásticamente ser melhor escolhida, pelo acaso, para receber esse texto: Estela Canto. "Arma virumque cano", 'Yo canto a Estela', a Estela "cantável', textual -mas é uma personagem real e parece, até, que havia um esboco de "affaire"...

Emir: Aquí, o que acontece é que eu conheço circunstancias que não incluí no livro porque se tratava de uma biografía literaria e não uma biografía puramente fatual. Talvez exista um motivo subconsciente em qué eu identifico demais a Beatriz Viterbo, como o negativo da Beatriz do Dante, embora eu não pense que Beatriz Viterbo seja Estela Canto exclusivamente. Ha outras mulheres que contribuiram, inclusive mais decisivamente, para a inversão paródica, mas é impossível falar disso publicamente agora.

Haroldo: Talvez o sistema de Borges seja multo mais do que o sistema de uma atribuição literal. Ele trabalha segundo o sistema do palimpsesto e faz um personagem mediante a inscriço fragmentária de pessoas reais.

Emir: Eu acho que Estela foi talvez a última de uma longa serie e a que suscitou a escritura do contó e do artigo critico.

Haroldo: Exatamente, é muito provável. Borges trabalha num sistema de rasuras de palimpsesto: assim varias coisas se superpõem.

Emir: Há outra mulher, Elvira de Alvear, que se parece ais a Beatriz Viterbo do ponto de vista da classe social. Borges lhe dedicou um poema maravilhoso. Ela era uma mulher muito bonita e vaidosa, tinha a obsessão dos espelhos, e quando enlouqueceu, cada vez que se olhava no espelho via o Borges. Todo esse "transfondo" biográfico não é mencionado na biografía porque, como eu digo explícitamente, não me interessa identificar explícitamente quem 'foi' Beatriz Viterbo.

Haroldo: E vai poder figurar na nossa entrevista?

Emir: Sim, porque esta não é uma biografía do Borges.

Haroldo: Vale o fato de que não poderia haver destinataria textual mais ideal para o 'Aleph', que Estela Canto. Nem o Borges nos impedirá disto, deste reconhecimento, e afortunadamente existia essa destinatária ideal. O que é curioso é que você trata dessa idéia demoniaca da mulher e o faz muito bem no 'Aleph'. É um pouco diferente o casodo 'Zahir', onde existe até mesmo essa idéia demoniaca na moeda, mas não está em Teodelina. Está nesta Beatriz Viterbo e da seguinte maneira: por inversão paródica mais acentuadamente, porque o que Borges fez com o Dante ai foi o que o Emir fez com o Borges. No séu ensaio critico, o Borges fez uma especie de psicografia ou psicanálise do Dante, por vía do texto da Comédia. Ele leu nesse texto que não é cónfessional, ele reconstruiu o encontró frustrado com a Beatriz, e concluiu que o Dante escreveu o seu Paraíso para ter esse encontrocom Beatriz, e o encontró foi decepcionante. Imagine bem, o escándalo textual da interpretação do Borges, o escándalo literario que significa uma pessoa organizar uma obra extremamente coerente, montada numa estrutura tripartida e maravilhosa como é a Comédia, somente para ter um "encontro" com Beatriz: e esse encontroresultar frustrado. Todo aquele maravilhoso edificio do pensaménto poético tem uma fissura que e a frustração amorosa do Dante com Beatriz. Agora, como é que Borges faz isso? Ele apanha a Vita Nuova, onde o Dante registra que ficou atônito quando fou saudado por Beatriz e há um laivo de frustração nessa descrição dantesca porque, aparentemente, parece que se entende, ou se pode imaginar, que, Beatriz foi distante: foi remota, inacessível, e essa imagem de Beatriz que teve Dante menino se transformou, hipostasiada pelo texto, com a morto de Beatriz, na Béatriz-musa teológica que habita o Paraíso: mas isto a partir duma redenço, de uma espécie de sobranceria ou de distancia ou não homologação daquele primeiro impulso amoroso que ele teve em relação a Beatriz real que é extraida do texto.

Emir: Há outra coisa, eu não tinha pensado antes mas estou pensando agora, ha aqueta passagem da Vita Nuova, quando Dante descreve o sonho em pueble vé a Beatriz e um homem todo vermelho que está tratando de forcá-la a comer um objeto vermelho, e ela se nega com nojo. O Dante entao interpreta o sonho como se aquele homem todo vermelho fosse o deus do Amor e o que ele estaria querendo era forçar Beatriz a comer o coração do Dante. Ai há outro mecanismo de frustração no próprio sonho. Não sei se Borges esteva pensando nessa passagem mas podería ser. O que eu quería terminar de comentar é que o elemento que une os contos "El Aleph" e "El Zahir" e o ensato "Encuentro en un sueño" é a idéia de obsessão. O que é satánico em Teodelina Villar não é a Teodelina mesma é a obsessão com a moeda, o Zahir. Essa obsessão com o Zahir está ligada ó presença de Teodelina Villar. O que é satánico em Beatriz Viterbo não é ela, ela é uma mulher bela mas vulgar, é a obsessão do "Borges" por ela, como Dante com a Beatriz.

Irlemar: Mas nesta mesma obsessao não é so o aspecto satánico (o que é satánico é a obsessão -interrompe Monegal) que vale. Existe a idéia de divindade na própria idealização obsessiva da mulher, que não deve ser desprezada em nenhum dos contos, porque senão se perde esse jogo do duplo.

Haroldo: Não sei se no 'Aleph', você poderla fazer esta mesma colocação tão acentuada pelo seguínte: porque aí, o problema da parodia não é apenas a degradação paródica da Beatriz. Eu diría mais, a paródia existe, como possibilidade, já no Dante. Borges foi, em certo sentido, literal, a paródia do Borges não é parodia, é uma retomada paródica de um contexto em que o Dante, por um efeito de justáposiço, exatamente, por apresentação quase que em termos de contigüidade, acaba, num certo nivel possivel de leitura, "degradando" a imagem de Beatriz. Borges já da um indicio interpretativo dessa natureza no seu ensaio critico. Quando Beatriz aparece para Dante, que é o momento da passagem do Paraíso terrestre para a subida aos céus, ela aparece de uma maneira muito estranha. Aparece num carro flamejante, que é puxado por um leão, que é também uma águia -uma "dopia fiera", um grifo, animal fabuloso... E Beatriz, nesse passo, trata Dante de maneira reprobatoria, severíssima...

Irlemar: Mas é um encontró frustrado porque o poeta visa encontrar na amada o seu próprio eu. A frustração é de não se reconhecer mais na amada.

Haroldo: Mas a coisa vai mais adiante.

Irlemar: É o não reconhecimento de si mesmo.

Haroldo: Isto é um aspecto. Mas acontece que é muito estranha esta passagem do Paraíso Terrestre até o fim do Purgatorio. É um curioso momento de "carnavalização" da Comédia, da presença da Idade Media com todas as suas gárgulas, seu grotesco, seu elemento carnavalesco, já estudado por Bakhtin. Dai extrai Borges sua carnavalização da imagem da Beatriz.(2) A procissáo tem um desenvolvimento de tipo pesadelar, continua em cenas oníricas, extremamente grotescase com um sabor gótico horripilante, que marcam de estranheza o momento da ascensão de Dante do Paraíso Terrestre para o Paraíso propriamente dito. Ali, nessa procissão que segue em forma de pesadelo, ha uma prostituta que representa Babel em cópula com um gigante. Então, na sucessão de imagens femininas que nos temos nesse texto, a imagem de Beatriz precede a imagem da prostituta. Quer dizer: a "degradação " que faz o Borges da imagem da Beatriz Viterbo, figura feminina que é retomada paródicamente de uma mulher teologal -a "musa teologal", a mulher angélica. Beatriz a benedita, a bendita -esta imagem que ele aprésenla "degradada" sob forma prostibular nas cartas de Beatriz Viterbo, já a encontrou "desmantelada" no Dante, era so juntar as pontas "subliminares" do pesadelo... O que ele fez foi uma montagem. O Borges encontrou elementos para a "degradação ", de Beatriz no próprio texto dantesco. Não de modo explícito, mas para uma mente palimpséstica como a dele, o próximo passo era evidente. A inversão possivel já está no Dante, nesse momento de "carnavalização" da Comédia; Borges retoma e acentúa esse traço, porque naquele momento o que importa para ele não é enfatizar o aspecto angélico da Beatriz. A dama provençal, a qual se prestava o culto do amor cortês, isso está no Dante. A Beatriz dantesca faz a transposiço desse momento de amor cortês para o momento, vamos dizer assim, da recuperação religiosa, teologal, desse estilema do amor cortês. Na interpretacáo, por exemplo, de Auerbach, o que ocorre é que o Dante, via Santo Tomás de Aquino, recupera os estilemas provençãis e lhes da um travestimento teologal. Esta é a diferença entre Dante, por um lado, e, por outro, a Provença e Guido Cavalcanti, que era aparentemente um poeta, "ateu', ou digamos assim, um livre pensador. Cavalcanti não fiaba a mesma visão teológica do Dante. A construço amorosa trovadoresca, que era laica, passa a ser religiosa em Dante. Agora, guando o Borges se apropria de Beatriz e faz a inversão paródica, ele faz a inversão em termos do pesadelo que se desenrola na Comédia, que é o momento de "carnavalização', e que lá tem um precedente na poesía dantesca. Esse precedente é a Dama Pedrosa, a mulher peora, o objeto das quatro "Rime petroso', onde aparece uma mulher dura como pedra, que nega o seu amor ao poeta.(3)

Leyla: O que é mais irónico é que Beatriz não é bendita exatamente como você diz, é aquel a que traz a bênção e a bem-aventurança.

Haroldo: A portadora, exatamente; ela tem um aspecto de gente, beneficente.

Leyla: Fica mais irónico, na medida em que ela frustre essa expectativa do poeta.

Haroldo: Exatamente, você tem toda a razão. A imagem dessa Beatriz degradada, que Borges extrai do momento de carnavalização da própria Comédia, se acresce essa figura precedente, que algumas pessoas imaginavam que era tirada também de uma experiencia real do Dante. A "Dama Pietra", que se recusa ao amor do poeta seqüência de cançôes que tem tais aspectos de violencia, que parecem premoniçôes de Sade: ela ladra como uma loba, e quando o poeta (na imaginação) consegue dominá-la, ele, por sua vez, a agride com violéncia de amor e odio. Existe ai uma forma realmente de luta sádica nesse embate amoroso. No livro do Emir, há um traço muito curioso, que me fez pensar na "Dama Pietra", j á porque o nome de Beatriz aparece mais de uma vez em textos borgianos. A Beatriz Frosty de "El Congreso" é a Beatriz gelada, como uma pedra no inverno. E, a pesar de que, com esta Beatriz, o protagonista: do contotem uma experiencia amorosa bem sucedida, não falta o signo de frustração erótica. Ela, como mulher inspirada pelas idéias de Ibsen se recusava a qualquer tipo de relação mais prolongada e duradoura. Por isso, ele tem também a frustração da recusa, uma recusa moderna, civilizada, mas também recusa. A recusa é tão intensamente sentida, que a última reminiscencia do narrador é exatamente o pensamento nessa Beatriz que se recusou a qualquer tipo de idilio mais duradouro. O Emir, no livro, mostra esse aspecto, ao indicar que essa Beatriz e uma personagem fugaz. No "El Congreso" aparece de repente, nem está bem dentro da historia; é um encontró casual, assim como o outro, o do Dante, o üm encontro no sonho. Eu acho que a enlase nesse aspecto "pedregoso" de recusa so tem sentido na medida em que a Beatriz do paradigma dantesco é um estilema da Senhora Provençal; se ela não fosse isso, não teria sentido a recusa. A recusa tem mais sentido quando ela deveria ter esse lado específicamente lavorável, luminoso etc. Borges precisa do contraponto desso lado luminoso no "Aleph", para que o aspecto pedregoso, o aspecto de pesadelo da figura feminina, ocorra e possa permitir, não digo mais a intenço paródica que, na interpretação borgiana, já existe no Dante, pelo menos subliminalmente, mas a extensão paródica da imagem dantesca.

Irlemar: Mas veja bem: na construção da Beatriz borgiana -ou reconstruço, de acordocom a sua feitura da revelação da Beatriz dantesca, como figura contigua a da prostituta-, os traços da imperfeição precedem a revelação. Beatriz Viterbo, antes de ser revelada pelo Aleph como mulher degradada, é descrita como frivola, superficial e desdenhosa. Teodelina também. Mesmo assim são objeto de devoção. São as "musas teologais", luminosas e imperfeitas. Talvez sela o paradoxo que gere a obsessão, tão insuportável que, não casualmente, em ambos os contos, Borges, insista no "olvido".

Emir: Esquecer é a única forma de salvar-se da obsessão. Cuando o Borges verifica que o Eros é um deus falível, isso não basta: a única coisa que pode salvala é o esquecimento. O narrador se libera do "Asir" para liberar-sé da obsessão. "Borges" pensa liberar-se de Beatriz, esquecendo-a, não tem outra saida.

Haroldo: Mas não é tão dada, parece-me, essa natureza "imperfeita" ou frágil da mulher, porque no caso de Beatriz Viterbo se aprésenta uma mulher de sociedade, de certas volubilidades amorosas; o que é dado diretamente é que ela não tem nenhum interesse na corte que o personagem "Borges" faz. Na realidad e, ele é o tempo todo recusado, não porque ela fosse especialmente maligna.

Emir: O que é maligno é a obsessão não a mulher.

Irlemar: Mas eu acho que há um jogo da atração pela imperfeiço.

Haroldo: Mas ha um momento em que a malignidade fica explícita, que é quándo ele através do "Aleph" passa a ter uma visão de lente de aumento. Então ele vé alguma coisa que naquela malignidade simplesmente trivial e a nivel de salão não aparecia: ele vé e le as cartas "minuciosamente obscenas" da Beatriz.

Emir: Mas, também, ele vé o interior do corpo dela, e vé o seu cadáver...

Haroldo: Ele a vé assím como o Baudelaire vía o cadáver em decomposiço no poema: "Une charogne".

Ilemar: É uma visão atroz, sem dúvida, mas isso não excluí a atração pela imperfeição -e pela própria crueldad e dessas mulheres indiferentes ou distantes.

Haroldo: No "Aleph", parece-me muito importante o trago da degradação, embora esse traço só possa ter sentido no momento em que existe a conversão da Beatriz como portadora da benção. Se se trata de uma mulher mundana, essa benção seria a retribuição amorosa, por que não? A santidade é multo mais trivial do que a gente imagina.

Emir: Outra vez o poema do Camerarius: "Yo que tantos hombres he sido..." O problema profundo é que todos os textos são realmente autocríticos. O que Borges está denunciando é a obsessão, porque o que é satánico é a obsessão, não a causa.

Irlemar: Mesmo assim, apesar da obsessão, ha o tema da busca, a viagem ao interior da consciéncia, o descenso aos infernos para o resgate duma identidade. Isso é o que eu tinha tentado sublinhar como um aspecto bastante relevante que enfim é paralelo ou complementario ao do carater "satánico" da mulher: a mulher quanto a luz que se busca, e enquanto espirito também.

Emir: Parece-me muito interessante a sua leitura. Mas insisto: o texto "Borges" é autopunitivo. Nele, é a própria mediocridade do narrador que impede aproveitar aquela luz. O mais curioso é que essa Beatriz que se nega a ele, não se nega ao Carlos Argentino Daneri, que é um mediocre. Por isso, é multo mais complicado "El Aleph" que "El Asir". No "Aleph" estao todas as variantes.

Haroldo: A Irlemar enfatizou que a Teodelina tem um aspecto divino (em Teo). Eu diria, ai entra claramente outro personagem que não tem nada a ver com o assunto, que é do Grande sertão: veredas. No texto do Guimarães Rosa, Diadorim é Deodorina, Deus e o Demo estão ali unidos num diálogo bastante cordial...

Emir: Outra censo se poderia dizer, que segundo certa interpretação das origens da poesía provençal, a adoração sem possessão da mulher amada é uma máscara que traslada so Eros heterossexual um dos principios do erotismo homossexual da poesía árabe. A teoría (do Nell) é talvez discutivel. Se fosse correta, explicaría por que a mulher está como proibida, inacessível. Não sei se aplicado ao texto do Borges indicaria que o verdadeiro objeto do désejo de "Borges" era o Carlos Argentino Daneri e não a Beatriz Viterbo...

Irlemar: O componente provençal, ao qual já aludí como intertexto borgiano, comparece explícitamente no final do contó "El Zahir", onde ha uma referencia ao sufismo, que é uma tradiço oriental, considerada como antecedente ó concepção do amor cortês provencal. No sufismo exjste a idéia da donzela que o poeta encontra depois da morte, que lhe diz: "Eu sou você mesmo". Essa tradição masdeísta está aludida por Borges, no final do "Asir". Borges dialoga com toda uma tradição do amor ocidental e não estritamente com a elaborada por Dante Alighieri. Ou sela, Beatriz iá é uma especie de sintese de toda uma tradição. O problema é que Borges trabalha ao longo de toda a modernidade, incluindo os barrocos espanhóis, os metafisicos ingleses, os românticos alemães. Baudelaire e os simbolistas franceses, e tudo isto forma um corpus bastante ampio de tradiço literaria do amor cortês, do amor paixão, que está condensada nos dois textos; ou mais, talvez, no "Aleph" que no "Zahir".

Haroldo: De qualquer maneira, parece-me que toda esta discussão mostra que, talvez, na base, se deva, no estudo do "Aleph" e do "Zahir", preservar não apenas o problema de identidade dos textos, mas o problema fundamental da diferença entre os dois. Ai, o que a fríemar está demonstrando é que são diferentes, mais do que são comuns, quer dizer. Que o tratamento da personagem, até onomásticamente: Teodelina, é diferente: e até no caso que você ou o ("copy-editor") a tenha transformado em Clementina. Sua leitura seguiu, nesse sentido, a linha interpretativa da "musa consoladora" e não a da "mulher fatal"...

Irlemar: Há uma piedade implícita ai. Realmente comovedora...

Emir: Eu sempre tenho um pouco de pena que ao "Borges", as coisas sempre lhe saiam mal. Eu realmente gostaria que ele tivesse conseguido o "desfalecimento" de Matilde Urbach. Mas, voltando aos dois contos, até no titulo se marca a diferença: um começa com a letra A; o outro com a Z. É como se o Borges quisesse marcar um Alpha e um Ómega.

Irlemar: As personagens femininas são complementarias. Em Teodelina, está multo bem marcada a imagem da divindade, e em Beatriz, a degradação : o A e o Z do alfabeto amoroso. No final, no "El Zahir", se diz que talvez detrás da moeda esteja Deus; ao terminar "El Aleph" se fala de esquecimento, inevitável ou necessário.

Emir: O que acontece é que cada vez que Borges fala de Deus é para negá-lo.

Haroldo: Não só a "degradação " de Beatriz, como acontece no "Aleph", mas é corroborada essa degradação pela degradação extraída por Borges do próprio "Dante", porque o personagem que também encarna Dante no contó, além do "Borges", o Carlos Argentino Daneri, é o autor de um poema que é uma mistura adultera, que é uma degradação da Comédia: É a tentativa de fazer um poema universal por um poeta extremamente mediocre, que acaba engendrando uma especie de "xaropada" épica. Então, a primeira degradação se une a esta outra, porque é a degradação do poeta e a degradação da musa, todos os niveis de degradação .

Irlemar: Dentro dessa construço em-abismo, que é o "Aleph", há a parodia do texto do Carlos Argentino Daneri, que seria também a parodia da Comédia.

Haroldo: Uma Comédia degradada e ao mesmo tempo uma Eneida degradada (com componentes descritivos de Geórgica geográfica...), porque não devemos esquecer que Virgilio foi o guia de Dante no Inferno e no Purgatorio: quem o levou a possibilidade de contemplação do Paraíso terrenal, ao límpiar, como Daneri levou o "Borges" ao porão onde estava a esfera de luz, o "Aleph".

Emir: Há tambem uma paródia do que foi um sonho do Borges adolescente. Ele quis ser um Whitman e acabou sendo uma paródia do Whitman. Nas suas Leaves of Grasses, o poeta americano daz o inventario do mundo inteiro. Essa modesta ambição era a do Carlos Argentino Daneri.

Haroldo: Até a idéia de Argentino, que aparece no nome, essa conotação de que ele quer fazer a épica do seu povo ou da sua raça, sugere a de uma épica "degradada". Éo Whitman as avessas.

Emir: Aceito esta interpretaço. Acho que -como diría o Borges- enriquece o texto."

1 Nota de 1981: Revisando as primeiras provas, conferí que o nome que en transcrevi era realmente "Teodelina Villar" e que os revisores mudaram para "Clementina". O meu erro não era meu. Aliás, tambem não era dos revisores. Na primeira versão do conto (publicada nos finales de Buenos Aires), ela se chamava "Clementina". Ao recolher o conto em voluma, na coleção El Aleph (1949), Borges trocou o nome por "Teodelina", para explicitar mais o sentido divino. A tradução, em ingles, que os revisores usavam (Labyrinths, New York, 1964) tinha sido feita sobre o texto original da revista. Daí, que eles mudaram asminhas mençôes para restaurar a "Clementina" original. Lamento que estas minúcias bibliográficas estraguem o divertido jogo lacaniano do diálogo (E.R.M.).

2 Nota de 1981: Borges escreve em seu ensaio: "Dois fatos me parecem indiscutíveis. Dante quería que a procissáo fosse bela ("Non che Roma di carro, cosi bello/rallegrasse Africano...); a procissão é de uma complicada feiúra. Um grifo atrelado a um carro, animáis com asas mosqueadas de olhos abertos, uma mulher verde, outra carmezim, outra em cujo rosto ha tres olhos, um homem que caminha dormindo, parecem menos próprios da Gloria que dos vaos círculos infernáis. (...) Minha censura não é um anacronismo: as outras cenas paradisiacas excluem o monstruoso".

3 Nota de 1981: Aínda do ensaio de Borges: "Tal foi o caso de Dante. Negado para sempre por Beatriz, sonhou com Beatriz, mas a sonhou severissima, a sonhou inacessível, a sonhou em um carro puxado por um leão, que era uma ave, e que era todo ave, ou todo leão, conforme se espelhava nos olhos de Beatriz. Tais eventos podem prefigurar um pesadelo; este se fixa e se expande no Canto seguinte. Beatriz desaparece. (...) o carro, então, emite sete cabeças: um gigante e uma rameira usurpam o lugar de Beatriz".

 
 
 
 
 

 

 

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