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"Até a morte"
Por Selma Calasans Rodrigues
En Jornal do Brasil, Caderno B, especial, 16/02/1986
p. 8

 

"Outubro, dia 25. Recebo uma chamada telefônica internacional. Era Emir, com voz forte e determinada, sentenciando o seu fim próximo: "Estou mal. Tomei algumas decisões: a primeira, de não mais me separar de você. Se você não puder vir para New Haven, eu fico no Rio até podermos voltar juntos. A segunda: antecipar minha ida ao Uruguai para esta semana, dia 31, do contrário talvez não possa mais viajar". Desliguei o telefone com uma decisão inabalável: ir ao Uruguai e não mais me separar de Emir.

E.R.M., nascido em 28 de julho de 1921 em Melo, Uruguai, quase fronteira com o Brasil, falecido em New Haven, Estados Unidos, em 14 de novembro de 1985, foi, segundo alguns estudiosos, o "inventor" da geração crítica de 45 de seu país de origem. Essa geração, que incluía Martínez Moreno, Mario Benedetti, Carlitos Real de Azúa, Alsina Thevenet e muitos outros, surgiu da militância crítica nas páginas literárias do semanário Marcha, que Emir dirigiu durante doze anos; também em Número, onde colaboraram ainda Idea Vilariño, Sarandí Cabrera e outros, mais os estrangeiros que passaram por Montevidéu (Borges, Camus, Neruda, Juan Ramón Jiménez, etc.). A partir de 1971, Emir esteve afastado de seu país, pois se intensificaram os rigores da ditadura militar, criando problemas com seu passaporte. E mais: sua filha Georgina caiu presa por ser tupamara. Desde então dedicou-se ao trabalho erudito e acadêmico no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Yale e à militância crítica em revistas especializadas. Antes porém de se radicar em Yale, passou anos alternando pesquisa e trabalho acadêmico em Londres, Cambridge, Liverpool e no Uruguai. Também em Paris, nos anos 66, 67 e parte de 68, dedicou-se ao trabalho crítico e à mais intensiva divulgação da literatura latino-americana através da revista Mundo Nuevo, por ele fundada e dirigida (até 68). Essa foi a época do chamado boom da literatura latino-americana, que deve muito a Emir e a Mundo Nuevo, pois nessa revista se publicaram as primeiras páginas de Cem anos de solidão, de Tres tristes tigres, de Guillermo Cabrera Infante, Cambio de piel, de Carlos Fuentes, e muitos outros. Tanto Manuel Puig como Severo Sarduy não se cansam de me dizer que Emir os "inventou", também em Mundo Nuevo.

Já radicado nos Estados Unidos, sua atividade jornalística continuou com a revista chamada Review, destinada também à divulgação da literatura latino-americana até surgirem problemas ideológicos que o afastaram desse tipo de trabalho, passando a dedicar-se exclusivamente à pesquisa erudita e ao trabalho acadêmico, sem nunca deixar de fazer crítica em revistas como Vuelta, Unam, Ibero-Americana.

A partir do começo dos anos 70 tornam-se freqüentes as vindas de Emir ao Brasil, especialmente ao eixo Rio-São Paulo onde várias vezes esteve como professor visitante. O Brasil era a pátria alternativa de Emir, já que seu pai era brasileiro e ele aquí viveu alguns anos, na infância e na adolescência. Aquí ele deitou raízes profundas não só quanto ao conhecimento e divulgação da literatura brasileira que ele sempre integrou no contexto latino-americano como também nas amizades profundas, no diálogo intelectual que manteve, por exemplo, com Haroldo de Campos, em São Paulo.

Na segunda-feira, 4 de novembro, às sete da noite, na Biblioteca Nacional de Montevideo, sala da presidência, por um longo minuto a chegada de Emir provocou um silêncio de emoções contidas. Estavam ali presentes os remanescentes da geração de 45, além de amigos, inclusive Haroldo de Campos e Irlemar Chiampi, parentes, o filho mais jovem Alejandro, e até os inimigos. Ele, triunfante, recebeu uma bela medalha e a homenagem do Uruguai através de seu presidente Sanguinetti: agradeceu de pé, em nome dos uruguaios "suficientemente porfiados para serem críticos". Em seguida foi levado para o auditório Vaz Ferreira, onde o esperava um público numerosíssimo que incluía as novas gerações acadêmicas do país. Emir proferiu uma palestra sobre "Borges, De Man, Derrida, Bloom: a desconstrução avant et après la lettre". Os olhos penetrantes e firmes no auditório, a maneira decidida de falar, cedendo por vezes à emoção, o brilho de sua exposição, o humor, sua marca registrada, a ironia, a ordem, a precisão, a crítica implacável… ele estava intacto, o mais vigoroso de todos os presentes. A cerimônia terminou com a leitura da mensagem de Jorge Luis Borges, feita pela professora Lisa Block, já que o escritor amigo de Emir, enfermo, nâo pôde comparecer pessoalmente como desejava.

A produção literária de Emir, bastante numerosa, consistente e variada, apresenta certa preferência pelo gênero biografia literária (El viajero inmóvil, 1966, sobre Pablo Neruda; Genio y figura de Horacio Quiroga, 1967; El otro Andrés Bello, 1969; Jorge Luis Borges: a Literary Biography, 1978). Essa preferência se radica muito provavelmente na própria concepção de discurso crítico e discurso ficcional.

Em entrevista concedida no Uruguai a Martín Caparrós (saiu em Clarín, Buenos Aires, 5/12/85), Emir mostra, a partir da obra de Borges (Pierre Menard, em especial), que em alguns momentos da literatura o discurso crítico e o ficcional se mesclam e que sua diferença prevalece apenas ao nível retórico e ao nível do pacto com o leitor. Pois "um leitor que lê um discurso crítico espera que o ilustrem analiticamente e filosoficamente. E o que lê ficção espera que o entretenham, que o distraiam, que criem um facsímil do mundo real que seja suficientemente acreditável, ainda que não necessariamente real: busca-se a verossimilhança, não a verdade". Mais adiante acrescenta que as biografias são o lugar onde se tocam esses dois hemisférios (crítica e ficção) pois por mais objetivo que o biógrafo queira ser, por mais documentação que reúna, há um momento em que o personagem fica à mercê do esforço imaginativo e da recriação de seu autor.

Desse modo pode-se concordar com Borges que sua biografia seja uma criação de E.R.M. Mas também não seria E.R.M. um personagem borgiano? ele se formou lendo o autor que viria a ser sua grande paixão literária. Nesse jogo de espelhos, é preciso lembrar que o próprio Borges, segundo seu biógafo, é um personagem de Borges: ele, por exemplo, sempre afirma não ter lido a Biografia escrita por Emir. Um día, porém, perguntou por que escreveu sobre sua mulher… A resposta imediata de Emir foi: "Quem botou sua mulher no livro fou você", pois "você esteve casado três anos".

A mesma reflexão se aplica ao gênero Memórias. Só é possivel escrever Memórias, paradoxalmente, a partir do esquecimento (E.R.M.). Daí ser necessário um certo distanciamento do fato vivido. O primeiro volume de suas memórias Emir o escreveu entre as duas operações. Chama-se As formas da memória e cobre o período da infância e da adolescência. Nas entrevistas dadas em Montevidéu, ele anuncia que, Deo Volente, suas memórias sairiam em sete tomos. O segundo, A oficina de Saturno, que cobre o período de Marcha e Número, não chegou a ser completado. Emir visivelmente jogou uma partida de xadrês com a morte. Como o cavalheiro de O sétimo selo, de Bergman, ele consegiu postergá-la, mas não vencer a partida.

De volta a New Haven, ainda tinha muitos planos de vida. Alguns se concretizaram (nos casamos oficialmente) e ele ainda escreveu alguma coisa, tudo no leito do Health Center de Yale, nos seis dias restantes disputados com a morte."

 

Responsables

L. Block de Behar
lbehar@multi.com.uy

A. Rodríguez Peixoto
arturi@adinet.com.uy


S. Sánchez Castro
ssanchez@oce.edu.uy

 


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